Coronavírus lota hospital em SP, e médicos correm para evitar escolher quem morre
Eram 11h15 de terça-feira, dia 14, quando os paramédicos do Samu chegaram com Cleber à UTI do Instituto Emílio Ribas.
O homem, cujo nome foi trocado nesta reportagem para proteger sua identidade, foi trazido do hospital de campanha do Anhembi. Mais de 80% dos pulmões de Cleber estavam tomados pelas lesões do coronavírus. Sua saturação (índice que mede o oxigênio transportado pelo sangue) havia chegado a 60%. Em uma pessoa saudável, o ideal é entre 95% e 100%. Era um milagre estar vivo.
Cleber tem 36 anos. Chegou inconsciente e intubado, respirando com ajuda de aparelhos.
A UTI do Emílio Ribas foi a primeira a ficar lotada na rede pública da cidade de São Paulo. São 100% dos leitos ocupados com pacientes de Covid-19; vagas só surgem quando um paciente tem alta — ou quando alguém morre.
No hospital, médicos correm contra o tempo para adiar o momento em que, esgotados os recursos, terão de escolher entre quem receberá apoio para continuar vivo e quem não.
Andando pelos corredores da UTI, é possível ver que o coronavírus não poupa os mais jovens.
Nos leitos de terapia intensiva, estão Sebastiana, 71, José, 73, Adão, 65, Maria, 71, Manoel, 62, Joana, 66, Gilvan, 69 mas também Adilson, 56, Cláudia, 43, Ricardo, 42, Adauto, 59, Vanessa, 37, Antonio, 52, Sérgio, 56, Victor, 27, Andrea, 43, Olavo, 58, Fábio, 37 e Vanessa, 22 (todos os nomes foram trocados para preservar a identidade dos pacientes).
Segundo levantamento, 50% das 82 pessoas internadas com coronavírus na UTI e na enfermaria do Emílio Ribas têm menos de 60 anos. Apesar de a doença ser mais letal em idosos com mais de 70 anos (pessoas nessa faixa etária perfazem 70% das mortes), a Covid-19 está longe de ser uma simples gripe para muitos dos jovens que se contaminam.
Muitos dos internados no Emílio Ribas nem tinham as chamadas comorbidades, condições que agravam o quadro, como diabetes e insuficiência renal.
Apesar de tudo, Cleber e todos esses outros pacientes graves de Covid-19 podem se considerar sortudos. Eles conseguiram uma das 30 vagas de UTI do Emílio Ribas, centro de referência de tratamento de doenças infecciosas que está na linha de frente do combate ao coronavírus. Todos os dias, o hospital recebe mais de cem pedidos de vaga para pacientes de Covid-19.
Assim que surgiu a maca de Cleber, enfermeiros e fisioterapeutas respiratórios correram para se paramentar. É assim que eles chamam o processo de vestir todo o equipamento de proteção, para se proteger da contaminação.
É muito fácil se infectar com o coronavírus. O vírus é transmitido pelo toque, como um aperto de mão, e pelas gotículas de saliva, enquanto a pessoa fala ou tosse, por exemplo. O microrganismo sobrevive horas ou dias na superfície de objetos como celulares, mesas, maçanetas, botão de elevador.
Quando Cleber chegou, a fisioterapeuta respiratória Lucilene Sousa, 51, já estava usando a máscara N-95, que protege dos aerossóis, as microgotículas invisíveis que ficam suspensas no ar. Estava vestida com o privativo, a roupa de trabalho que fica dentro do hospital, os sapatos especiais, além da touca nos cabelos e óculos transparentes.
Como ela entraria em contato direto com um paciente contaminado, teve de colocar o resto do equipamento de proteção. Em cima do privativo, pôs um avental descartável; vestiu luvas, e, na cabeça, colocou um capacete com viseira transparente, parecida àquela dos soldadores, para evitar que gotículas de saliva atinjam o rosto.
“As pessoas tocam no rosto, em média, 23 vezes por hora. Para os enfermeiros e fisioterapeutas, que ficam constantemente em contato direto com os pacientes de Covid, qualquer distração pode levar à contaminação”, diz a enfermeira Talita Souza Gois, que supervisiona treinamentos no hospital.
O Emílio Ribas foi fundado em 1880 como o Lazareto dos Variolosos, onde ficavam em quarentena doentes com varíola, que na época chegava a matar em 30% dos casos. Em 140 anos, o hospital esteve na linha de frente do combate a várias epidemias —meningite nos anos 1970, HIV a partir dos anos 1980, H1N1 no fim dos anos 2000.
Por ser um hospital de isolamento, todos os quartos da UTI e da enfermaria do Emílio Ribas têm uma antecâmara de pressão negativa. Os médicos e enfermeiros passam por esse cômodo antes de entrar no recinto onde fica o leito do paciente.
Quando a porta da antecâmara é aberta, o ar do corredor é sugado para dentro — não há circulação de ar contaminado para fora. Poucos hospitais no Brasil contam com esse sistema.
Cada técnico de enfermagem ou fisioterapeuta faz o ritual de se paramentar e desparamentar dezenas de vezes por dia, ao entrar e sair de cada leito. No fim dos plantões, quando profissionais já estão cansados e estressados, aumenta o risco de cometerem erros que podem levar à contaminação.
O momento de maior perigo para os enfermeiros e médicos é a intubação e a extubação do paciente.
Na intubação, é inserido um tubo na traqueia do paciente, ligado ao respirador, ou ventilador mecânico, que fará o trabalho que os pulmões não conseguem realizar. “Quando a gente retira o tubo, o paciente tosse bastante, tem muito aerossol”, conta Lucilene.
O outro momento de grande risco de contaminação é a chamada desparamentação. Os profissionais seguem um roteiro minucioso para tirar o equipamento de segurança, que é todo descartado na antecâmara e não sai do ambiente contaminado.
Detalhes são importantes: a touca deve ser retirada de trás para frente, o avental precisa ser manuseado pelo lado limpo e dobrado em cima do lado sujo antes de ser jogado fora. É o mesmo tipo de rotina de segurança que se usava para cuidar de pacientes com ebola na África.
Todos os dias, quando chega em casa, Lucilene deixa os sapatos para fora, tira toda a roupa e põe num saco para lavar, entra no banho e lava os cabelos. Os vizinhos sabem que a fisioterapeuta trabalha no hospital e, com medo, não entram no elevador com ela.
“Sou acostumada a cuidar de pacientes com problemas respiratórios, mas essa doença é muito rápida. De manhã o paciente está conversando, à tarde está intubado.”
Sempre ao acordar, Lucilene pede que Deus a proteja. Assim que pisa no hospital, ela se benze.
Por enquanto, a taxa de infecção de profissionais médicos no hospital é baixa. Há 40 funcionários afastados, entre suspeitas de Covid-19 e confirmados, entre mais de 1.000 funcionários. Em outros hospitais onde há menos expertise em isolamento, o número de funcionários contaminados é bem maior.
Outra área de alto risco é a triagem do pronto-socorro. É por lá que chegam os pacientes com suspeita de coronavírus.
“No primeiro dia em que trabalham na triagem, as pessoas estão morrendo de medo”, diz a infectologista Marta Ramalho, 55 anos, há 30 no Emílio Ribas. Há grande probabilidade de entrar em contato com infectados.
Na triagem, um médico e um enfermeiro farão a classificação de risco do paciente e determinarão se ele precisa ser internado.
A vendedora Lia (nome trocado) foi ao pronto-socorro porque sua chefe teve diagnóstico positivo de coronavírus e ela está com medo. Antes de ela entrar na salinha, a infectologista Marta Ramalho aperta o dispensador de álcool em gel com o cotovelo para que Lia passe o produto, e diz, brincando: “Mãos ao alto, não toque em nada”.
A jovem entra, com as mãos para cima, enquanto enfermeiros verificam seus sinais vitais — febre, pressão e, muito importante, a saturação de oxigênio no sangue. Ela põe o dedo no oxímetro, o aparelhinho que mede a saturação. “Já posso abaixar as mãos?”, pergunta.
Se a pessoa estiver com baixa oxigenação no sangue e tiver sintomas como tosse, febre, ou cansaço ao fazer tarefas rotineiras, como tomar banho e lavar a louça, ela é encaminhada para fazer uma tomografia do tórax.
Na tomografia, normalmente os pulmões afetados pelo coronavírus têm uma lesão característica chamada de “vidro fosco”. Em outras doenças, como pneumonia causada por bactéria, em geral a imagem do pulmão aparece com regiões bem brancas; já nos casos de coronavírus, é comum os dois pulmões terem manchas com essa aparência opaca.
Lia estava com os sinais vitais normais e foi mandada para casa e orientada a ficar 14 dias isolada, em quarentena, por ter sido exposta.
Só os doentes internados fazem os testes para determinar se estão contaminados com Covid-19. Muitos outros, que têm todos os sintomas, e muito provavelmente têm a doença, são apenas orientados a ficar em casa em quarentena. Não fazem testes, e, portanto, não entram nas estatísticas de infectados do país.
Muitos estão internados há semanas no hospital e ainda não se sabe o resultado dos seus testes, porque o Instituto Adolfo Lutz está com milhares de exames acumulados. Desde sexta-feira passada, alguns hospitais públicos fecharam um convênio com um laboratório particular, o que acelerou resultados dos exames PCR.
Escolhas
É por meio de um sistema chamado Cross (Central de Regulação de Ofertas e Serviços de Saúde), da secretaria estadual de Saúde, que pacientes “sortudos” são direcionados para uma vaga em um hospital como o Emílio Ribas.
Quando há um paciente de Covid-19 que precisa de transferência, unidades básicas de saúde ou outros hospitais fazem o pedido pelo Cross. O sistema aloca os pedidos de vagas, que são então analisados por uma equipe do hospital, seguindo alguns critérios.
Hoje, a prioridade no Emílio Ribas é para Covid-19. Pacientes com outros problemas graves, como câncer ou HIV, são direcionados a outros hospitais.
Segundo o médico intensivista Jaques Sztajnbok, chefe da UTI do Emílio Ribas, os pacientes de Covid-19 que estão em estado mais grave, ou seja, realmente precisam de internação em terapia intensiva, têm preferência.
Além disso, o hospital leva em conta o local onde estão os doentes. “Um paciente que está no Hospital São Paulo ou no Ipiranga, que têm mais estrutura, tem menos urgência do que um que está em uma UPA”, diz Sztajnbok.
“Temos muito medo do dia em que teremos que fazer a escolha de Sofia”, diz Sztajnbok. A expressão alude ao filme de Alan Pakula (1982), baseado em um romance de William Styron, no qual uma mãe em um campo de concentração é forçada a escolher qual de seus dois filhos será morto.
Na Itália, onde faltam vagas em todos os hospitais e o sistema de saúde entrou em colapso, médicos precisam decidir quem vai receber subsídios para tentar viver — o paciente que terá um leito com médico e respirador.
Nessa escolha, os profissionais se veem obrigados a usar critérios como quem pode contribuir mais para sociedade, quem tem filhos e família, quem tem mais chances de sobreviver.
“Aqui no Emílio Ribas, a água já está batendo no pescoço, já estamos saturados”, diz Sztajnbok. Seis grandes hospitais públicos, cinco na capital e um na Grande São Paulo, estão com taxa de ocupação dos leitos de mais de 70%. No Emílio Ribas, além de a UTI estar lotada ou quase lotada, conforme o momento do dia, a taxa de ocupação na enfermaria está em 83%.
“Por isso precisamos tanto do isolamento social”, explica o médico.
Segundo ele, quase todo mundo vai pegar Covid-19, mais cedo ou mais tarde. Muitos serão assintomáticos, e apenas 5% terão a forma grave da doença e precisarão de internação. Mas, se todo mundo se contaminar em um curto período, 5% “de todo mundo” é muito mais gente do que os hospitais conseguem dar conta.
“É uma corrida contra o tempo”, diz Luiz Carlos Pereira Júnior, diretor técnico do Emílio Ribas. O hospital já abriu dez leitos adicionais de UTI e abrirá outros dez. Já há ventiladores para esses leitos extras; agora, o desafio é contratar pessoal qualificado, tanto médicos como enfermeiras.
“Está muito difícil achar intensivista no mercado”, diz Pereira. O hospital está treinando médicos de outras especialidades, como anestesistas, cirurgiões e clínicos gerais, para atuarem nas UTIs de Covid-19.
“Precisamos ganhar tempo com o isolamento, para que esses serviços estejam todos estruturados”, diz Pereira. “O pior pesadelo será ter que fazer a escolha, alguém de 46 ou alguém de 66.”
Segundo o diretor, “as próximas três semanas serão muito difíceis.”
Incógnitas
Os próprios médicos e enfermeiros, até em instituições de ponta, ainda sabem muito pouco sobre a doença.
Em 23 de março, na primeira vez que a enfermeira Lívia Correa Araújo Galbiatti ajudou a intubar um paciente com Covid-19, ela achou que os aparelhos do hospital estavam com defeito. Antes de colocar o tubo na traqueia de Elisa (nome trocado), 71, para ligá-la a um respirador, a oxigenação da paciente foi caindo e chegou a 15%.
Elisa foi ficando com os lábios e as pontas dos dedos roxas. “Trabalho há sete anos em pronto-socorro, já presenciei dezenas de intubações, mas nunca vi nada igual. Os médicos também estavam chocados”, conta Lívia.
Depois de Elisa, a enfermeira viu diversos outros pacientes de Covid-19 chegando ao pronto-socorro lutando para respirar e com oxigenação do sangue tão baixa que não se sabe como estavam vivos. “Eu sempre me lembro da vez em que quase me afoguei em uma praia em Fortaleza. Eles chegam aqui se afogando, em terra firme.”
Elisa foi uma das 17 pessoas que morreram de coronavírus no Emílio Ribas desde 22 de março.
Uma das pacientes que Jaques Sztajnbok visitou na UTI na quarta-feira (15) tinha o nível de proteína C reativa, que indica processo inflamatório ou infeccioso no corpo, acima de 700.
“É um índice obsceno, nunca vi tão alto”, disse. Os doentes com Covid-19 sofrem a chamada “tempestade de citocinas”, em que o sistema imunológico mobilizado para combater o Sars-CoV-2, acaba tendo uma reação exagerada e se transforma em um ataque contra o próprio corpo. O alto índice da proteína C reativa é uma das indicações dessa inflamação.
Os médicos também estão aprendendo, na prática, como tratar da doença. Como na Itália, alguns pacientes são colocados de bruços, e ficam “pronados”, no jargão médico, durante 16 horas, porque isso facilita a expansão do pulmão.
No Emílio Ribas, médicos ministram anticoagulantes para certos pacientes, porque um dos efeitos do coronavírus é a formação de coágulos dentro dos vasos sanguíneos do pulmão, que impedem a passagem do sangue e, consequentemente, o funcionamento normal do órgão.
Médicos têm observado que o chamado nadir clínico do paciente —momento em que a doença fica mais grave — costuma acontecer entre o oitavo e décimo dia após o início dos sintomas.
Panaceia
O hospital participa de um estudo da Organização Mundial de Saúde que está testando quatro possibilidades de tratamento: cloroquina e azitromicina, um antibiótico; Kaletra (lopinavir), medicamento contra o HIV; lopinavir e interferon e rendesivir — este foi usado contra Ebola.
Sztajnbok critica a politização do uso da cloroquina. “Hoje em dia, se você é contra a cloroquina, é a favor do [governador João] Doria; se é a favor, apoia Bolsonaro.”
No Emílio Ribas, o medicamento está sendo usado apenas em casos graves, e não indiscriminadamente.
“A cloroquina já foi usada contra diversas doenças virais, como zika, Mers, Sars, dengue, nipah, chikungunia, HIV”, enumera.
“Por enquanto, está sete a zero para os vírus não funcionou bem contra nenhum deles. Mas estamos tentando marcar um gol de honra, fazer o 7 a 1, pode ser que funcione contra Covid-19, então precisamos tentar.”
Sztajnbok adverte para as altas expectativas em relação à descoberta de uma droga que cure a doença. “Não acho que vai existir um super-homem contra o coronavírus, um medicamento que vai resolver tudo”, diz.
“A Covid-19 é diferente de todas as outras epidemias que vivemos, porque volume de pacientes é avassalador e eles chegam em estado muito grave. E, assim como não tinha remédio para o ebola, ainda não há para o coronavírus.”
Fonte: Yahoo Notícias